29 agosto 2007

[ele+ela]


Brincavam. Já era fim de tarde, mas eles ainda brincavam. O terreno, bem perto da casa dos dois, já estava vazio, depois de tantas crianças se divertindo juntas. Já havia tido bandeirinha, se esconda, queimada... Depois de todos cansados, só os dois mantinham a força, removendo terra à procura de algum tesouro.

Não sentiam vontade de sair. A companhia um do outro era boa: ele sabia mais brincadeiras que ela. Ela tinha bem mais imaginação para incrementar as brincadeiras que ele. Na rua, nunca tinha existido essas divisões entre o que era de menino e menina. Todos se divertiam juntos, fosse jogando futebol (o qual ela fazia muito bem), fosse na amarelinha (três cicatrizes eternas na perna dele, por conta de quedas homéricas no céu), o lance era juntar o maior número de crianças, para que demorasse mais.

Só restavam os dois, contudo, e a vontade de continuar era a mesma. Ela disse que os tesouros vinham para as princesas e ele retrucava falando que princesas não tinham os dedos imundos de terra molhada. Ela ria. Estavam embaixo de uma goiabeira que sempre fora motivo de confusão na turma, por conta de quem conseguia subir nela.

Ele sempre fora ágil, magrinho, daqueles que passam em meio a multidão como se estivesse correndo em campo aberto. Ela, por ser um ano mais velha, já estava mais encorpada, sendo mesmo mais forte que ele. Depois de perceberem que, muito mais que competir, podiam juntar as qualidade, sempre tinham mais goiaba que os outros. E ele ainda dizia que o suco de goiaba com leite dela era melhor que sorvete de morango.

A goiabeira estava sem frutas, a época já havia passado. Umas poucas folhas não impediam a luz dormente do sol batesse nos olhos deles, mas não importava. O tesouro tinha de ser achado, dizia ela, “eu sei que o pirata colocou ele aqui”. Dessa vez, ele que riu. Adorou pensar em piratas numa cidade tão distante do mar, principalmente quando ela disse que eram piratas espaciais e teriam chegado voando em naves que imitavam navios, com âncoras virtuais e chapéus computadores.

“Como você pensa tudo isso?”, perguntou curioso, ainda rindo. Ela soltou um muxoxo, como que desinteressada, mas ao dizer que pensava para fazê-lo rir, ficou vermelha. A luz do sol batia de frente à ele, o impedindo de ter visto, mas ouvir fez bem pra ele, simplesmente. Passou mais um tempo, a noite teimava em não chegar e eles continuavam a brincar parados, somente olhando de vez em quando um para o outro.

Às vezes, ele jogava um punhado de terra nela, que retribuía ao mesmo tempo em que se aproximava. Quando sobrava apenas uma réstia de sol, ele pediu que ela chegasse mais perto: tinha encontrado algo que parecia com a alça de um baú e que ela era de ouro.

Ela sentou bem de frente à ele e o ajudou a cavar. As mãozinhas pequenas iam aumentando o buraco, e eles faziam mais força. Ele se ajoelhou e, impressionado, viu que realmente havia algo ali. Quem puxou foi ela: com aspecto velho, um grande relógio dourado, com ponteiros pretos, ainda marcava as horas. “Está funcionando”, ela disse. Ele, rindo, perguntou que horas eram. “Hora de ir pra casa”, respondeu. Levantou-se rápido, deu um beijo nele e aproveitou os últimos raios de sol para chegar em casa antes de anoitecer.

27 agosto 2007

[esgoto do bom]



O diretor Jorge Furtado tem um senso de humor fino. Só isso explica sua capacidade de nos fazer rir enquanto ele critica toda a estrutura cinematográfica brasileira, desde a maneira, por vezes sem sentido, que os recursos para a produção são distribuídos, até a forma de fazê-los nas coxas, sem perceber a real importância que um filme tem para a cultura do país.

Em Saneamento Básico – O filme (Brasil, 2007), o cineasta usa e abusa da meta-linguagem para produzir uma história que mistura esgoto e cinema. Na comunidade italiana de Linha Cristal, no sul do Brasil, os moradores decidem se reunir para, junto à prefeitura, requerer providências para a construção de uma fossa de esgotamento sanitário. Ao saberem que dinheiro para saneamento não existe, mas um recurso de R$ 10 mil foi enviado por Brasília para a produção de um filme, Marina (Fernanda Torres) decide que essa era a chance de eles terem o tão desejado esgoto.

Junto de seu marido, Joaquim (Wagner Moura), eles deixam se levar pela onda glauberiana de "uma câmera na mão e uma idéia na cabeça", e fazem um filme de ficção no qual um monstro nascido de uma mutação genética acorda de seu sono bem no dia em que a bela Silene Seagal (Camila Pitanga) estava à caminho do seu baile de formatura. O tino para a comédia de Furtado já é bem conhecido, principalmente pelo seu ótimo trabalho em O homem que copiava (2002), mas em Saneamento ele se supera.

Diferente da maioria das comédias americanas, em que a escatologia é o modos operandi da risada, o roteiro de Furtado é leve, sem deixar de ser inteligente e, o melhor, é incansável. Dos 112 minutos de filme, poucos não são supridos de risos. Claro que, aqui, existem algo além do que o roteiro. Como suporte indispensável está a ótima atuação, principalmente do casal Marina e Joaquim.

A capacidade dos dois irem da comédia ao drama numa troca de olhares, sem que exista pieguismos, mostra uma relação sólida e, por mais engraçada que seja, bonita. E Wagner Moura dá mais uma justificativa do hype que existe em cima de seu trabalho. O seu Joaquim é de uma ignorância tão terna que fica impossível você não entender porque ele quer tanto bancar a idéia de sua esposa.

Ao fim da sessão fica a dúvida do que realmente é importante. Na diferença entre cultura e saneamento, quais são as necessidades mais primordiais da população? Mesmo com a descoberta dos talentos, como o de Marina, fazendo as vezes de produtora, ao de Joaquim, um figurinista de monstros geneticamente modificados super competente, o único desejo deles é conseguir o dinheiro suficiente para construir a fossa. Não importa se o roteiro do que é produzido é ruim ou as atuações capengas: o que basta é que o filme seja feito e a verba possa ser entregue.

Sejam os maneirismos para conseguir patrocínios para a realização do filme, seja o abuso dos governantes, que se valem da idéia dos moradores para se promoverem ou mesmo de um desejo maior de, ora, simplesmente ter saúde para quem mora na vila, Saneamento Básico – O filme atesta o talento de Furtado e prova que, tenha sua rua esgoto ou não, vale muito a pena sair de casa para ver o filme dele.

23 agosto 2007

[yeah yeah right]


"Aparentemente, o simples fato de sermos humanos já é suficientemente dramático para todos nós; não é preciso ser viciado em heroína ou ator perfomático para vivenciar emoções extremadas. Só é preciso amar alguém"


Como ser legal - Nick Hornby
[and now, leave me alone]

21 agosto 2007

[eu te digo]

Você parece sempre sentir medo quando eu estou por perto. Um receio, um temor... misturado à uma necessidade de manter-se ao me lado. Me abraça por segundos determinados, tempo suficiente para que eu não pense nada além deles e beija a minha cabeça sem tocá-la, como se uma mão a mais pudesse entregar tuas vontades.

Claro que é pretensão demais minha imaginar que elas existam. Imagino que você as tenha porque é bom para mim. Eu adoro sonhar que, realmente, suas mãos querem ir além. Que nosso abraço pode durar mais um pouco, até que a gente sinta por completo nossos corpos um no outro. Que um beijo não seja nada além de um beijo, só para que ele possa acontecer e não te faça sentir culpa por achar que é errado.

Eu acho que seria bom. Seria bom você não ter medo de mim. Não esperar que eu tenha ação, quando na verdade eu também fico cheio de receios. Mas, eu também não acho que estaríamos sendo corretos. São tantas pessoas envolvidas, tantos problemas que um suposto amor pode trazer, que me dá preguiça de ser herói e lutar contra os moinhos de vendo, principalmente por achar que apaixonar-me por você é algo fácil.

Por mim, continuo a ter o que tenho, mesmo imaginando mais longe. Com quando passo a mão nos teus cabelos lisos, em um cafuné demorado, enquanto você finge que dorme, resmungando que eu não mexa com você. Ou ouço teu riso demorado, sincero, alto, quando eu te conto aquelas histórias que todo mundo acha sem graça, mas você consegue perceber onde eu quero chegar com elas.

Naqueles momentos que te dou cerveja e vejo tua careta azeda, para depois me pedir mais um copo cheio, lambendo os lábios, até chegarmos à embriagez e começarmos a rir de nós mesmos. Deitar do teu lado para assistir um filme bobo, e perceber o tamanho de sua beleza quando está prestanto atenção em alguma coisa. Ou ainda ouvir você falando mal da sua chefe, malogrando sua suposta incapacidade de sair de perto dela e rezando para que ela não faça sexo.

E, falando em sexo, queria fazer sexo com você. Queria passar uma tarde inteira suando, sem me importar com o celular que chama, a crise aérea ou da seleção de vôlei, que, por sinal, você adora mas eu odeio. Queria te comer em uma piscina, depois da tarde de suor, em cima da mesa da sala, no meio do jantar, enquanto você espera pela novela, pra te mostrar que, diferente do que você fala, o sexo de verdade é bem melhor que na televisão.

Queria poder ficar abraçado em você depois de gozarmos, rindo do seu cabelo revoltado depois do sexo, fumando um cigarro, sem roupa, só para que você fizesse cara de nojo para meu momento clichê. Queria te desejar novamente bem rápido e, com isso, fazermos tudo de novo.

Mas, se não posso ter o que quero, paciência. Você, com sua monogamia apaixonada, tão típica, querendo manter casa, família e cachorro. Eu, com minha estranha mania de querer o novo, sabendo que ele me impede de fixar terreno em qualquer que seja a modalidade de amor. Não combina, né? Mesmo assim, dá uma vontade...

03 agosto 2007

[uma vida iluminada (?)]

[porque eu sei que ela não vai ser publicada na íntegra mesmo...]

Um dos maiores símbolos dos 155 de Teresina não intimida as caras e bocas de Savana Vogue. Agarrada à cruz da Igreja de São Benedito, o travesti sente-se uma estrela, posando para as lentes fotográficas, com empinadas dos seus 3l de silicone no bumbum, bicos e levantar de pernas.


A noite da capital aniversariante não é feita somente de horários para se voltar para casa ou perigos que rondam alguma esquina vazia. O centro de Teresina ainda consegue manter sua vida mesmo quando o sol vai embora e, como parte essencial dela, estão os travestis que fazem ponto nas diversas esquinas do bairro.


"Teresina é uma cidade ótima. O preconceito diminuiu e hoje você consegue ser mais respeitada por ser travesti. Antes, entrar em um ônibus era o fim, isso se o motorista parasse para você. Agora não existe mais esse problema e a gente consegue ser bem tratada em quase todos os lugares", diz Savana, que tem 35 anos e é travesti desde os 22.


A vida dessas "mulheres" é uma montanha russa. Sempre bem humoradas e soltando diversas gírias típicas delas, o mundo em que vivem os travestis do centro de Teresina é único, pontuado por histórias de todos os tons. "Eu já cheguei a fazer até oito programas em uma só noite. Mas isso só acontece quando a gente acha um bofe bem bonito porque aí você não cobra nada e ainda faz de tudo, porque a gente também precisa se divertir", afirma Savana.


O sonho da maioria delas é embarcar para a Europa e ganhar em euro pelos programas, para depois casarem-se com um senhor rico do Velho Mundo. Excetuando o marido rico, receber muitos euros é a meta de Dandara Bionda.


Aos 23 anos, o travesti é voluptuos(a) como as famosas mulatas do Carnaval carioca, só que em versão loira e, depois de passar uma temporada em São Paulo, está de malas prontas para embarcar para Barcelona, na Espanha. "Meu namorado é corretor de imóveis em São Paulo e é louco de ciúmes de mim", garante.


"Pus 700ml de silicone nos seios e 1l no bumbum, gastando R$ 6 mil com tudo. Meu cabelo é metade meu, metade aplique e as minhas roupas, bem, essas eu compro as primeiras que eu acho na loja que caibam em mim", diz, com uma indiferença nada típica de mulheres, quando todos sabem que elas demoram muito para escolher o que vestir. "Demoro mesmo é com a maquiagem, gasto muito com ela, mas tem que ficar bonita para os bofes", garante, rindo.


Quando perguntada se não pretende fazer uma cirurgia para a retirada do pênis, Dandara dá uma gargalhada. "Você é louco? Como você acha que eu vou ganhar meu dinheiro? Os homens querem mesmo é o que eu tenho entre as pernas", revela. Segundo os travestis, quase 100% dos homens que contratam seus serviços querem ser passivos durante o sexo.


E mesmo entre as mulheres de verdade elas fazem sucesso. Dandara fala que recebe muitas cantadas delas, principalmente de ditas heterossexuais. "A gente acaba sendo tudo o que elas querem, porque entendemos a alma feminina e ainda temos uma coisa para futucá-las", afirma, rindo.


Ser travesti não é ser homossexual, apenas. Mesmo que elas sintam-se atraídas por pessoas do mesmo sexo, o desejo se parecer com as mulheres, em relação às roupas e o comportamento social é que melhor os define. E, claro, não é uma opção e sim uma orientação sexual.


"Desde criança que eu queria me vestir de mulher, parecer com elas. Quando eu conheci a Dandara, disse para ela que queria me vestir de mulher. Ela me montou e disse: 'Vai, demônio'. Isso eu tinha 10 anos", garante Rebeca Lorraine que também faz ponto nas esquinas da praça João Luís Ferreira.


A mais espevitada, Rebeca diz que quando desfilou pela casa vestida de mulher apanhou demais dos irmãos. "Um deles é policial e me odeia", diz, sorrindo. Ela também é quem conta as histórias mais fortes entre as entrevistadas.


Fala que, uma vez, levada com uma amiga por um grupo de jovens ricos da zona leste da cidade, teve sua cabeça colocada dentro da piscina, em uma tentativa de afogá-la. "Por sorte, a outra que foi comigo conseguiu ligar para a polícia, mas eles não fizeram nada. Ainda bem que aqueles playboys nos pagaram", lembra.



Mesmo as histórias mais trágicas, ganham conotações engraçadas quando ditas por elas. A mais antiga entre as entrevistadas, com 20 anos de ponto, Dayane Bianca diz que, antigamente, os travestis sofriam muito. "Antes, existia a turma do Melecão, uns riquinhos que se juntavam para bater nos travestis. Isso não existe mais", fala.

Ela lembra que, em uma das primeiras vezes em que se montou, estava próximo a Igreja de São Benedito com amigas. "Do nada, uma delas avistou a turma do Melecão e gritou para que a gente corresse", recorda. Dayane saiu correndo e disse que, mesmo com seus 95 quilos à época, pulou os muros do mosteiro de São Benedito em um único salto. "Ia muito ficar para apanhar, ia?", diz.


Não, não ia. Aliás, não o foi e voltou a rua, como todas fazem todas as noites. Porque o centro de Teresina é mais característico na presença dos seus travestis. E, no seu aniversário, como a todos que formam essa cidade, ela agradece.


Gírias:

1. Aliban: policial

2. Aquenda: ficar com alguém ou prestar atenção

3. Dzar: sair fora

4. O doce: levar uma surra ou fazer algo de ruim

5. Aqué, lajan: dinheiro

6. Ocó, bofe: homem

7. Mavu: ladrão

8. Mapô, racha: mulher

9. Elza: roubo ou ladrão

10. Caé: azar

11. Gravação: sexo oral

12. Eque, baque: desculpa esfarrapada

13. Cleide: polícia

14. Quebrar a louça: sexo entre travestis

15. Bolha: camisinha

16. Buboque: nariz

17. Apeti: peito

18. Mocozar: esconder

19. Baquiosa: mentirosa

20. Gongada, triscada: HIV soropositivo